& 6. O DUALISMO JOANINO.

 

OS DOIS MUNDOS 

        — Na teologia Joanina, encontramos um dualismo aparentemente diferente ao dos Sinópticos.   Nos Evangelhos Sinópticos, o dualismo “é primariamente horizontal: um contraste entre duas eras — a era presente e a era vindoura. Nos Sinópticos a “era presente” ou “esta era” equivale a expressão “este mundo” (ver uso Paulino em I Co. 1.20; 2.6-8; 3.19 onde estes termos são usados alternadamente) “O dualismo de João é primariamente vertical, um contraste entre dois mundos — o mundo superior ( de cima )  e o mundo inferior ( de baixo ), (Ladd, p.209). “Vós sois de baixo, eu sou de cima; vós sois deste mundo, eu não sou deste mundo” (Jo. 8.23). O dualismo Joanino representa quase sempre um contraste entre “este mundo” como  mal, sob o governo do Diabo (16.11) e  o mundo de cima — de Deus (18.36). “Jesus veio para ser a luz deste mundo (11.9). A autoridade de sua missão não procede “deste mundo”, mas do mundo de cima — de Deus (18.36). Quando a sua missão estiver cumprida, ele deve partir “deste mundo”(13.1)... Jesus veio dos céus para cumprir uma missão que ele recebeu de Deus (6.38).” (Ladd, p. 209)

 

TREVAS E LUZ.  

        — O mundo de baixo é do mal, recusa-se a aceitar a luz, é governado pelas trevas (Mal), mas o mundo de cima é de Deus — da luz, Jesus veio  trazer a verdadeira luz para os homens não permanecerem mais nas trevas, a fim de praticarem a verdade sem tropeço (1.5; 8.12; 9.5; 11.9; 12.35.46). Os que desprezam a luz, descrêem em Jesus, coroam o Mal.

 

CARNE E ESPÍRITO

       — Outro contraste no dualismo Joanino está no sentido em que Carne é pertencente ao reino de baixo; e Espírito, ao que é de cima. A carne (não é pecaminosa, pois o "Verbo se fez carne" 1.14 )  representa a fraqueza e impotência do reino (inferior) humano, limitado, gerado na "vontade da carne" (1.13) e que é incapaz de elevar-se à vida do mundo de cima ( 6.63). 'O que é nascido da carne é carne'(3.6); o homem mortal precisa nascer de cima — do Espírito, para compreender, experimentar e participar do Dom e das Bênçãos do reino de Deus (3.12). Jesus, (vindo de cima) instituiu uma nova ordem de adoração, sem Jerusalém ou Gerizim, substituiu escatologicamente instituições temporais (humanas) como o Templo, ao introduzir que a adoração é espiritual "em espírito e em verdade" (Jo.4.24).

 

KOSMOS.

       — João fez uso deste termo ("mundo", kosmos): - Para designar a obra criada como um todo (17.5, 24); como a terra em particular (11.9; 16.1; 21.25), como designando (por metonímia) o gênero humano  (12.19; 18.20; 7.4; 14.22). Destaque especial ao uso como sendo a — humanidade — o objeto do amor e salvação de Deus (3.16, 17; 4.42; 1.29 e 6.33)  Deixa transparecer que o mundo criado não é mal, pois "Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez" (1.3), o mundo criado, continua sendo de Deus.

 

KOSMOS:  O HOMEM EM INIMIZADE COM DEUS

        — Um uso diferente do termo, não encontrado nos Sinópticos, é que além de habitantes e objeto do amor de Deus, kosmos caracteriza a humanidade decaída, rebelde e alienada de Deus(7.7; 15.18; 17.25). O kosmos (humanidade) se afastou de Deus para servir aos poderes malignos, isto sim é mal (12.31; 14.30; 16.11; ver I Jo 5.19).   A vinda de Jesus originou uma divisão entre os homens do kosmos (15.19), os escolhidos por Jesus, formam uma nova comunidade organicamente em Cristo (17.15) no mundo, não pertencendo ao mundo (17.16), mas aborrecida pelo mundo (15.18; 17.14). Os discípulos têm uma missão (continuação da missão de Jesus) são enviados ao mundo (17.18), através da obediência e santificação, Deus os guarda do mal (17.6,17,19,15). 

Esta separação do gênero humano em povo de Deus e povo do mundo não é portanto, uma divisão absoluta. Os homens podem ser transferidos do mundo para a condição de povo de Deus por ouvir e responder à missão e mensagem de Jesus (17.6; 3.16).  Dessa forma, os discípulos devem perpetuar o ministério de Jesus no mundo a fim de que os homens possam conhecer o evangelho e ser salvos (20.31) do mundo.  O mundo não pode receber o Espírito (14.17), pois, de outra forma, ele deixaria de ser o mundo, mas muitos, no mundo, aceitarão o testemunho dos discípulos de Jesus (17.20,21), e crerão nele, mesmo sem jamais o terem visto (20.39) (Ladd, p. 212)

 

SATANÁS.  

         — João não registra a luta de Jesus com os poderes das trevas (Satanás e demônios), ele simplesmente descreve a existência sobrenatural de um poder maligno (8.44; 13.2), que é “príncipe”(archon – governador, senhor, é assim que ele é denominado nos Sinópticos cf. Mt 12.24) deste mundo (12.31; 14.30; 16.11), que está procurando vencer Jesus, embora seja impotente para tal (14.30), é como derrotado (expulso) por Jesus em sua cruz (12.31,32; 16.11).

 

PECADO.

        — “Nos Sinópticos hamartia foi utilizado para descrever os atos de pecado, manifestações

de pecado.  Em João há uma ênfase maior, colocada sobre o princípio do pecado.  O Espírito Santo deve convencer o mundo do pecado (não de pecados) (16.8).  O pecado é um princípio que, neste estágio, se manifesta na descrença em Cristo.  Todo aquele que vive na prática do pecado está em escravidão — é um escravo do pecado (8.34). ‘O pecado humano é servidão ao poder demoníaco e, conseqüentemente, completa separação de Deus.’ A menos que os homens creiam que Jesus é o Cristo, morrerão em seus pecados (8.24). (Ladd, p. 214)

Trevas é sinônimo de pecado, indicando que o caráter do mundo é pecaminoso(trevas) (1.5), o mundo procura engolfar (apanhar) os que andam na luz (12.35), mas quem anda nas trevas ignora como e onde vai (12.35), Jesus o Logos de Deus, é o único que dissipa as trevas, quem nele crê, recebe a luz e torna-se filho da luz (12.36).

 

PECADO É DESCRENÇA.

       — A frase, crer em Cristo (pisteuoeis), aparece apenas uma vez nos Sinópticos (Mt. 18.6), mas em João, 13 vezes nas palavras de Jesus, e 29 vezes na interpretação de João.  Ela é importante porque expressa a essência da justiça, por outro lado, a descrença é a essência do pecado (16.9), se os homens não crerem perecerão (3.16) permanecendo a ira de Deus sobre eles (3.36)  morrerão em seus pecados (8.24).

MORTE

         — “João não fala muito sobre a morte, a não ser como um fato a respeito da existência do homem no mundo.  Ele não oferece especulações a respeito da origem, quer de Satanás, do pecado, ou da morte.  À parte da vida trazida por Cristo, a raça humana está entregue à morte, e é responsável por este fato, em virtude de ser pecaminosa.  A morte é característica deste mundo, mas a vida veio a este mundo procedente de cima, a fim de que todos os homens possam escapar da morte e entrar para a vida eterna (5.24)” (Ladd, p. 214).

 

DUALISMO ESCATOLÓGICO.

           — Assim como nos Evangelhos Sinópticos há uma proclamação da salvação no Reino de Deus escatológico, por meio de Jesus que invadiu a história pessoalmente para cumprir sua missão. João anuncia "uma salvação presente na pessoa e missão de Jesus, a qual terá uma consumação escatológica"(p. 221).  O dualismo de João é bíblico, pois proclama a visitação de Deus encarnado na história humana, e a meta final que é a ressurreição,  o  julgamento  e  a  vida  na  era  vindoura.   "O mesmo dualismo, com

 seu duplo aspecto, caracteriza os escritos bíblicos.  Se bem que a estrutura básica dos Evangelhos Sinópticos revela um dualismo escatológico — a mensagem de um Reino escatológico que irrompeu na história na pessoa de Jesus — os Evangelhos refletem também um dualismo vertical.  O céu é concebido como a habitação de Deus, ao qual os discípulos de Jesus ficam dinamicamente relacionados. Os que conhecem a bênção da soberania de Deus e sofrem por ele alcançarão grande recompensa nos céus (Mt 5.12). Jesus desafiou os homens a ajuntar tesouros nos céus (Mt. 6.20)... A ilustração mais viva é o Apocalipse do Novo Testamento, onde João é arrebatado aos céus em uma visão, a fim de testemunhar a revelação do plano redentor de Deus para a história. Ao passo que ele observa as almas dos mártires sob o altar celestial (Ap. 6.9 e ss.), a consumação outra coisa não significa senão a descida da Jerusalém celestial à terra (Ap. 21.2). A estrutura básica da literatura bíblica é que há um Deus nos céus que visita os seres humanos na história e que efetuará uma visitação final, a fim de transformar uma ordem — estado de coisas — caída e habitar entre os homens em uma terra redimida.  Isto é completamente diferente do dualismo grego, o qual encontra salvação no vôo libertador da alma desde o plano da história até o mundo celestial." (Ladd, p. 220).

 

O Dualismo Grego  verifica  a  existência  sob  dois  versos  "    o  fenomenal  e  o  numenal: o

mundo mutável, transitório, visível e o mundo invisível, eterno, que é a esfera de ação de Deus.  A realidade última pertence somente ao mundo superior.  O homem, da mesma forma que o universo, é uma dualidade: corpo e alma. O corpo pertence ao mundo fenomenal, a alma, ao numenal.  O mundo visível inclusive o corpo do homem, não é considerado mau em si mesmo, mas é um fardo e uma prisão para a alma.  A famosa expressão idiomática que descreve a relação entre os dois é soma-sema: o corpo é o túmulo ou prisão da alma.  O homem sábio que é bem sucedido em dominar suas paixões corporais e permitir que sua nous (mente) reine sobre seus desejos inferiores.  ‘Salvação’ é para aqueles que dominam suas paixões; e, por ocasião da morte, suas almas serão libertadas de sua escravidão terrena, corpórea, a fim de, libertas, desfrutarem uma imortalidade abençoada.  Salvação é alvo que se obtém como resultado da ação humana — pelo conhecimento.  Platão ensinou que a razão humana pode apreender a verdadeira natureza do mundo e do próprio ser humano, e, dessa forma, controlar o corpo [...] No gnosticismo plenamente desenvolvido, a matéria é ipso facto má, e o homem somente pode ser salvo mediante a recepção da gnosis concedida por um redentor, que desceu ao mundo inferior, ascendendo, depois, ao mundo mais elevado.” (Ibid, p.218)

 

Com relação ao dualismo de Qumran, existem semelhanças no dualismo ético e escatológico: João usa as mesmas expressões de — luz versus trevas —, ao descrever situações éticas, e também esboça a mesma expectativa do triunfo escatológico final da luz. Contudo difere do dualismo de Qumran, no fato em que "o conflito é entre dois espíritos, dominando sobre duas classes distintas de homens", mas no Evangelho o Logos encarnado é a luz, e todos os homens estão em trevas, e são convidados a virem para a luz. Também difere acerca da teologia do pecado, "nos escritos de Qumran, os filhos da luz são aqueles que se dedicaram à estrita obediência à Lei de Moisés, conforme interpretada pelo Mestre da Justiça, os quais voluntariamente se separaram do mundo (dos filhos da perversidade).  Em João, os filhos da luz são aqueles que crêem em Jesus e conseqüentemente recebem a vida eterna.  Para Qumran, as trevas representam a desobediência à Lei; para João, as trevas simbolizam a rejeição de Jesus." (Ibid, p.219-20) Concluímos que se houve alguma influência de Qumran nos escritos de João, ocorreu apenas nos aspectos da linguagem e terminologia característicos, já na teologia sofreu influência.

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Elaborada por Walter Meleschco Carvalho, e atualizada em 28/09/2005